Faltavam poucos metros e à volta da embarcação nada existia, senão mar. Ele sabia melhor. Sabia que existiam nuvens por cima de si e peixe por baixo. Sabia que o mar é grande e misterioso e que nem só de peixe é feito. O resto da tripulação não parecia partilhar da sua visão. Mas o resto da tripulação não o importava muito, quando a sua crença era maior que o céu inteiro.
Era Maio. O sol começava a erguer-se acima das ondas. Reflectia-se nelas e como um espelho partido, inundava a embarcação de reflexos. Começava mais um dia e ele era calador. Trata-se de uma missão simples, lançar as redes de pesca ao mar. Simples para Isíldo. Muitos homens antes dele lançaram redes, mas nenhuma trazia tanto peixe quanto as suas. Nem tudo pode ser atribuído ao acaso, o resto da tripulação sabia-o e Isíldo era respeitado naquele navio. A sua missão era aquela, lançar e vigiar as redes. Nada mais fazia e nada mais queria fazer, gostava assim.
No entanto, quem conhecia melhor o calador podia perceber uma pequena diferença no seu entusiasmo recentemente. Os seus gestos estavam mais vívidos, o seu olhar mais aguçado. A razão era as redes, ou melhor, o que elas traziam. Com tanta fome mais ninguém se deu conta, mas ultimamente, para lá do peixe, aquelas cordas traziam pérolas. Umas amarelas, outras vermelhas, outras verdes. Uma por cada vez que a rede subia. Vinham atadas delicadamente, sempre com o mesmo nó, coisa que peixe não fazia.
Passaram-se meses. Um pequeno saco debaixo da sua cama estava cheio daquelas preciosidades. Guardava-o cuidadosamente e todos os dias, cuidadosamente, acrescentava mais uma. É que, pouco depois de as notar, o calador começou a atar objectos à rede sempre que a lançava ao mar. Foi um palpite, quis ver o que acontecia. Aconteceu. Primeiro foi um pente e quando a rede subiu, no seu lugar estava uma pérola. Depois uma navalha de barbear, depois uma meia. De todas as vezes recebeu pérolas de volta. Claro que a perda destes bens levou a que se tornasse no mais barbudo e despenteado homem no navio. Não se importava. Quando já não tinha mais o que atar, começou a escrever. A caneta era emprestada, mas as histórias daquelas cartas, repletas de detalhe e encanto, nasciam das suas próprias mãos. Escrevia sobre os seus dias na terra, de como eram belas as florestas onde cresceu e do quão rico seria o seu futuro. Escrevia-o sabendo que pouco sabia, se alguém as leria, se falaria a mesma língua, se as receberia de todo. Mas acreditava: entre uma sereia e um monstro algo existia e era mágico pela certa.
O tempo continuava a passar. Um saco já não chegava para todas as pérolas que tinha e o papel findara. Era um sinal, talvez mesmo escrever já não fosse suficiente.
Ágil que era com as redes, não foi difícil dar um nó em si mesmo. Não havia mais nada em que pensar. Atirou-se ao mar. Queria falar-lhe. A água quebrou facilmente ao seu peso e afundou-se. Atravessou um cardume. Afundava-se mais. O rosto dos marinheiros que, na berma do navio o espreitavam, encolhia.
O mar estava cada vez mais escuro.
O mar era cada vez mais frio.
Ele ia morrer.
Ele acordou com uma pérola entre os dedos e um estetoscópio no peito.