Pé Direito

Cimento

O sol poente entra pela janela nua. Os restos de um dia quente e trabalhoso estão ainda espalhados pelo chão e nas paredes, onde há alguns minutos ecoavam vozes num sotaque beirão, descansa apenas o cimento fresco.
O silêncio era ocasionalmente perturbado por um carro distante, mas foi uma voz masculina que ecoou pelo quarto vazio afirmando como as coisas se estavam a compor. A escutá-lo do aro da porta estava uma presença feminina que, apesar de silenciosa, transparecia emoção nos seus gestos. A voz masculina, profunda, estendeu-se por mais alguns minutos: um sonho de criança - e porque não uma criança - a mobília que viria, a cor para as paredes e as noites perfeitas que se seguiriam dali para a frente e como dali para a frente é que tudo contava.
Não sei precisar o momento exacto da conversa em que a presença feminina, esguia e com os olhos a florir, se aproximou da voz masculina para lhe dar a mão, sei precisar no entanto as três horas e dezassete minutos que os dois ficaram sentados perto da janela a olhar a paisagem, gradualmente mais escura. Avança a noite. Gradualmente mais clara. A iluminação de rua.
Talvez pelo cansaço após um dia laboral, ou simplesmente porque há horários rotineiros que devem ser cumpridos, a voz masculina e a presença feminina saíram finalmente da divisão, depois da casa. Depois da rua, abandonando o espaço ao cantar dos grilos, progressivamente mais sonantes com a chegada definitiva da noite.


Branco

É primavera. Sente-se não apenas pelas árvores que, para lá da janela, florescem, mas também pelos sorrisos que, deste lado, brotam. Entre a primavera e brincadeiras mimadas de quem está ainda terrivelmente apaixonado existe uma cortina branca, fina, da mesma cor da parede. Todo o quarto fica banhado por uma aura clara sempre que o sol sobe acima das montanhas. Era um desses momentos.
Uma voz masculina espreguiçou-se ainda debaixo dos lençóis. Esticou-se mais até que sentisse cada pedaço dos seus músculos desentorpecer e sossegou novamente. Ao seu lado, uma presença feminina, a mesma de sempre que para bem deste conto, e pela forma como se ilumina, apelidaremos de Aurora. Um daqueles nomes intuitivos, ou preguiçosos, que surge da mesma forma que o Farrusco, que é um cão, ficou Farrusco por ser, bem, Farrusco.
Mas a Aurora. A menina que ilumina. Aurora espreguiçara-se logo a seguir, contagiada pelo bocejo do seu marido. Ainda não se habituara à palavra: marido. Quanto à sua noite foi mal passada. Dormiu pouco, tudo às custas de um segredo que quis guardar mais tempo do que aquele que parecia poder suportar. Deu-lhe uma data, contudo. Hoje o segredo deixaria de ser segredo. Levantou-se e apressou-se para a casa de banho.
Ele, ainda a saborear os primeiros minutos da manhã, deixou-se ficar quieto entre os lençóis a ouvir o chilrear dos pássaros, particularmente activos nesta altura do ano. Teria de ir trabalhar. Ficou mais um pouco antes de se despedir com um beijo habitual e sair já à pressa de casa. Ela trancaria a porta algum tempo mais tarde, o dia era de folga, mas não contara a ninguém.
Do interior da casa podiam escutar-se os primeiros grilos, sabe-se por isso que a noite começara a cair e que a cortina, apesar de branca, não impediria os últimos raios de sol de aquecerem o tom às paredes, alaranjando-a.
Aurora tinha cabelos claros e caracóis definidos, tudo boas características, não se lhes aliasse a elas uma ponta de rebeldia que nos melhores dias a fazia parecer completamente desajeitada. Em geral não se preocupava, mas não hoje. Hoje era uma ocasião especial. Passou horas à volta de cremes, pentes e secadores à procura do cânone certo de beleza. Acabaria por o encontrar. Preparou a mesa de jantar para dois e não dispensou as velas ao centro da mesa, secretamente compradas.
Ele chegou finalmente. Desatento, não estranhou o tremelicar da luz das velas sobre a porta de entrada, foi antes o aprumo da sua mulher que lhe fez cair o queixo e o cansaço. Articulou um: estás muito bonita, baixinho. Ela segurou-o pela mão e indicou-lhe a cadeira. Sentaram-se e serviram-se em silêncio. O jantar ficara um pouco torrado, mas havia coisas maiores dentro daquela noite.
Terminaram a refeição. Ela sorriu-lhe e anunciou que tinha algo para contar. Ele, ainda hipnotizado com todo o seu requinte, acenou-lhe um sim. Aurora disse por fim: Estou grávida.
Correram até ao quarto e fizeram amor novamente.


Rosa

Faz frio e o frio é quebrado por um choro estridente. Ao fundo ouve-se uma pancada muda seguida de um gemido. Ele aproxima-se e segura-a ao colo. O choro cessa. A casa parece retomar o mesmo sossego de alguns minutos atrás, talvez mais confortável. Com certeza mais segura. Percebe-se pela silhueta proporcionada pelo luar que a bebé tem exactamente os mesmos caracóis da mãe. Talvez do pai tenha herdado a voz capaz. Ele sentou-se na cadeira junto ao berço e ficaram no conforto um do outro até amanhecer, a uma hora dali.
A manhã trouxe um novo mundo. O quarto, antes dos pais, agora da pequena, estava muito diferente. Em grande parte, senão tudo, para acomodar o bem-estar do novo rebento. Paredes rosa, cortinas ilustradas, vários peluches pelo chão e outros a treparem pela cama, o sonho de qualquer criança.
Aurora, qual amanhecer perfeito, entrou pelo quarto e deixou-se enternecer pelo cenário encontrado. Não o da desarrumação do espaço, mas sim o do pai a segurar nos braços a sua filha. Era simples, estavam ali as duas pessoas mais importantes de todo o mundo. Ele, amor à primeira vista, ela, doze horas de parto para a melhor dádiva que existe.
Estava na hora do infantário.


Papel de Parede

Bateu com a porta e saiu de repente. A Pequena Aurora completara a maioridade fazia já três anos. Ele, com a mesma voz profunda, confortou-a dizendo: não te preocupes, é só um amuo, daqui a nada volta para pedir desculpa, como sempre.
Aurora e o seu marido, ele um pouco mais careca, ela com o mesmo sorriso, mas o dobro das rugas, repousavam na renovada sala - antigo quarto da Aurorinha. A janela manteve-se quieta durante todos estes anos, foi sim o seu interior que se mostrou permeável às constâncias de uma vida. Hoje o sofá aponta para a televisão ao canto. As cortinas são rendadas à mão e a parede foi coberta com um papel repleto de flores. A tentativa era trazer o jardim para dentro de casa. O resultado não foi muito feliz, mas dizê-lo seria falso pois nos seus rostos não se decifrava senão agrado.
É do tijolo, porventura, ou da parede. Creio ser isso. É da parede, incrível ostentadora de sonhos. Forte e protectora, verdadeiro braço da família.
Assim permaneceram, sentados no sofá comum. Conversavam palavras calmas depois do estrondo. Algumas sobre o passado repetiam pequenos arrependimentos, viagens por fazer, decisões que ficaram por tomar, no entanto as suas vozes ecoavam realmente quando pronunciavam as histórias vividas. O dia no lago e as peripécias. O Alentejo. O primeiro dia na casa nova. Os grilos. As primaveras. As férias. A notícia da Pequena Aurora. A Aurorinha. O seu aniversário. O seu choro. Os primeiros passos. As primeiras palavras. As primeiras vezes.
As suas mãos enlaçaram-se até que anoitecesse, embebidos pela ternura das suas memórias. Mais tarde, a porta que outrora estalara em raiva, abria agora em mil desculpas. Todos sorriram. Aninharam-se no sofá. E mais do que as histórias que se contaram, contaram as histórias que dali se fizeram.

*Texto escrito em 2010 e publicado no livro "Páginas Lentas", colectânea que reuniu obras de vários autores.