De onde vêm as bruxas?



De Onde Vêm As Bruxas?  Já muitos se terão perguntado, mas a Joana Lopes decidiu ir para lá da pergunta e responder em forma de livro. O resultado é um conto terno, com humor, várias interrogações, mas sobretudo afirmações sobre a vida de bruxa, com uma pitada de lobisomem e curiosidades acerca do que os dragões perguntam a si mesmos. Esse texto valeu-lhe o primeiro lugar entre 1500 participações na 1.ª edição do Prémio de Literatura Infantil do Pingo Doce. Ficou a sabê-lo em Junho. Daí até Setembro era altura do desafio ser lançado aos ilustradores.

Foram cerca de 400 aqueles que responderam à chamada. Eu fui um deles. O universo das bruxas é rico e não demorou muito para que algumas ilustrações surgissem. Fossem elas resultado da leitura directa do texto, fossem interpretações que acrescentavam uma segunda história aquela que lia. As obras, para minha sorte e surpresa, agradaram ao júri (liderado por Zita Seabra, constituía-se por André Letria, Pedro Sousa Pereira, Inês Moura Paes e Sara Miranda), e foi-lhes atribuído o 1.º lugar.

A vitória deste prémio foi anunciada oficialmente durante a Feira do Livro do Porto, numa cerimónia que contou com a presença de Rui Moreira, Presidente da Câmara Municipal do Porto, Luís Araújo, Director-Geral do Pingo Doce, e uma plateia repleta. Com este prémio chegavam duas notícias que mais pareciam saídas de um conto de fadas: um prémio monetário muito generoso e a publicação do respectivo livro.

Voaram dois meses na companhia da Alêtheia, a editora pela qual o livro seria materializado. Muitas horas de trabalho. Mais horas de trabalho para que todas as ilustrações e palavras tivessem o lugar certo. Um desmaio por falta de sono, rapidamente corrigido. E depois, a primeira prova do livro chegava por correio. Estava bonito. Está bonito, cheira bem. Há livro. Há finalmente um livro onde o meu nome partilha a capa com a ilustração. Dali até que ao lançamento oficial foram apenas uns dias.

Hoje que escrevo é esse dia, 17 de Novembro, 2014.
Oito horas dentro de um autocarro com Lisboa pelo meio e alguns momentos inesquecíveis. O livro foi apresentado numa das salas de teatro mais antigas de Lisboa e das mais bonitas do mundo, o Teatro Nacional de São Carlos. A plateia foi preenchida por várias personagens do livro, por isso, o público subiu ao palco onde uma centena de outras cadeiras os aguardavam. A proximidade entre todos tornou mais íntimo o primeiro momento da cerimónia, o Coro Juvenil de Lisboa acompanhado do Maestro Nuno Lopes, ao piano, interpretou um excerto de uma ópera de Verdi. Pedro Soares dos Santos, Presidente e Administrador-Delegado do Grupo Jerónimo Martins, subiu ao palco para frisar a importância deste prémio e revelar que para o ano, além de Portugal, também existirá uma edição na Colômbia. Depois foi a vez da actriz Filomena Cautela ler, direi, interpretar, alguns excertos do livro. Fê-lo de forma maravilhosa. O momento seguinte pertenceu aos autores, eu e a Joana tivemos a oportunidade de receber o prémio pelas mãos de Nuno Crato, Ministro da Educação e da Ciência e do Director-Geral do Pingo Doce, Luís Araújo. A cerimónia encerrou com uma nova canção do Coro após uma intervenção do Ministro.

O livro está assim, a partir de hoje, disponível em qualquer loja Pingo Doce, onde pode ser adquirido por 3.99€.

Da minha parte, repito os agradecimentos que tornaram tudo isto possível: ao Pingo Doce por criar esta iniciativa e apostar num meio muito rico mas nem sempre devidamente apreciado; aos meus pais que ao longo dos anos apoiaram as minhas decisões, mesmo quando essas decisões passavam por ser ilustrador; à minha namorada, a Ana, que lida e abraça lados de mim que eu próprio desconheço; e aos meus amigos que em conversas, insultos, provocações, desafios e insistências fizeram de mim o que sou hoje.


17 Novembro, 2014.
Viseu.
Quando o ar condicionado
do autocarro
arrepiou a minha pele
sabia que a viagem começara.
Não tardaram os solavancos
ajeitei-me e dei-te a mão.
Dar-te a mão é essencial para
o meu conforto.
De repente tudo estava no seu lugar.
Da janela milhares de paisagens voavam.
Todas elas pareciam
unir-se perfeitamente com o teu rosto,
o nosso amor.
segurei algumas.
estas memórias durariam
para sempre.
e se que desse por isso
Lisboa.

*Parte da exposição "Viseu-Lisboa".

Fornjot

Viviam-se tempos atribulados na Via Láctea. Milhares de milhões de anos passaram e o sol estava cansado, mas ao contrário dos homens, brilhava mais. Estava gordo e vermelho como um Pai-Natal. Brilhava tanto que cresceram árvores em Fornjot, uma lua de Saturno. Matilde achava aquele fenómeno maravilhoso. Deitada na delicada mas venenosa relva rosa de Fornjot, olhava para os espaços entre as ramagens e trincava os lábios à cor laranja dos frutos aí suspensos. De repente, um pequeno bicho, semelhante aos nossos esquilos, saltou entre uma e outra árvore, parando por um momento para olhar para ela. Matilde acenou-lhe. Era o seu sonho de menina e ali, onde as coisas eram puxadas para o chão, tudo parecia verdadeiramente mágico.
Matilde completou há alguns dias a universidade. O seu desejo de recém-licenciada era visitar Fornjot, algo proibido até há pouco tempo atrás, mas ali estava. Continuava a contemplar cada pedaço daquele pequeníssimo satélite com fascínio. Queria lembrar-se de tudo, das flores que cobriam grande parte da planície e da habilidade com que a luz vermelha se fundia com as pétalas transparentes para se multiplicar num arco-íris. Queria lembrar-se que ao fundo existia uma pequena colina tingida de vermelho, como os vulcões em erupção. Tudo era importante, mesmo a sombra que cobria as costas da sua mão ou o som da brisa, puxando os seus cabelos para a frente do rosto. É fácil, quando temos treze anos, guardar todos estes detalhes. Especialmente se faltar pouco tempo para morrermos.
Era talvez por isso que Matilde não podia ser inteiramente feliz. O mundo estava a acabar. Não só a terra, já engolida pela cintura do sol, mas também as luas de Júpiter, os asteróides, os cometas e os anéis de Saturno, tudo isso iria desaparecer. Incluindo ela.
A pequena Matilde acabou a universidade numa nave espacial. Deu um beijo mal saboreado e aprendeu a cozinhar. A Matilde tinha muitos dons, mas o universo é infinito e despreocupado.
A verdade é que os sóis não morrem, perpetuam-se. Quando estão muito velhos incham e os que não explodem, transformam-se num nevoeiro cuja luz percorre todo o universo, para sempre, contado a história daquele funeral.
Matilde não era inteiramente feliz, sabia que a sua existência deixaria de ser verdade em breve, mas tomava conforto na distância das coisas. Ela sabia que nalgum lado e ao longo do tempo, será sempre Hoje. Muitos milhares de anos depois, aquele dia ainda estará a acontecer e todos os que espreitarem por um telescópio, à procura de uma estrela em suicídio, poderão encontrá-la deitada, junto das enormes árvores de Fornjot, a acenar, porque aquele dia aconteceu, e tal como o sol, também é perpétuo.
o estado das coisas lá fora
não reflecte a tempestade dentro de mim
e embora seja noite
o luar ainda ofusca.
sou mãe para um filho
que já não me dá a mão.
agora tem uma namorada
com quem trocar carícias
e sorrir e abraçar.
a minha criança
já não é pequena,
mas também não paga renda.

Se Babel não acabasse

"Ele vivia no prédio mais alto da mais alta cidade do mundo. Ela não tinha um braço e bailava porque para dançar bastam pernas e os olhos dos homens. Em Chamat havia muitos homens."
Naquele planeta a vida foi passando com eles. Mataram quem precisaram matar para conseguir o que ansiavam conseguir. Conseguiram tudo. Era um mundo diferente, mas as leis são universais. Pareciam ter tudo o que desejavam, até um ao outro - com direito a registo de propriedade privada assinado - tinham uma vista sobre a cidade, um carro, o melhor vinho e as melhores drogas. Experimentaram tudo. Chamava-se NAVE, a nova droga. Não se sabiam ao certo os efeitos que provocava, mas pelos relatos que circulavam nas ruas podiam ser magníficos e devastadores. Ou apenas devastadores. A rua não tinha muitas certezas. Eles, ansiosos por agarrar mais um pedaço de vida, não hesitaram em fazer parte da nova experiência. Envenenados foram ao cinema, riram de si mesmos, viajaram mais e despistaram-se.
A morte, como em todos os sonhos, despertou-os.
As alucinações pareceram durar apenas alguns minutos, mas quando abriram os olhos os corpos estavam velhos. O cabelo dele era inexistente, o dela estava branco como nos pólos, o prédio de mil andares tinha apenas três, a vista era para uma floresta, mas não de metal. As pernas, essas, estavam cobertas por uma manta fina. Estavam ambos em cadeiras de rodas, já não andavam há muitos anos. Ao olharem um para o outro sorriram e deram a mão, muito lentamente, que era o ritmo natural dos seus gestos. Tinham as veias furadas e estendidas por um pequeno tubo até um saco suspenso numa espécie de cabide de metal andante.
Ele olhou-a e, roucamente, disse: "Século dezanove. Tu és filha dum visconde, uma mulher delicada, mas decidida, muito bonita. Eu sou barbeiro, o melhor de todos, que mesmo as mulheres almejam ter o seu cabelo cortado por mim. Eu apenas aceito cortar o teu. Entendido?"
Ela respondeu: "Sim. Desta vez ninguém morre. E a casa do visconde, a minha, é junto à praia." Ele anuiu e com a mão esquerda carregou no botão que trazia consigo. Ela fez o mesmo e outra gota de morfina desceu pelo tubo de plástico. Adormeceram.
As enfermeiras já estavam habituadas a este ritual. Por vezes reparavam no casal a falar-se e pouco depois a adormecer simultaneamente. Nunca entenderam bem o porquê, mas nenhuma se deu ao trabalho de lhes perguntar. Eram velhos.


*Babel é um texto de Letizia Russo, encenado por Sónia Barbosa. A peça de teatro que tive oportunidade de acompanhar de perto, estreou hoje, a 7 de Setembro de 2013. Este texto é uma possível continuação do que lá vi.

Dum navio

Faltavam poucos metros e à volta da embarcação nada existia, senão mar. Ele sabia melhor. Sabia que existiam nuvens por cima de si e peixe por baixo. Sabia que o mar é grande e misterioso e que nem só de peixe é feito. O resto da tripulação não parecia partilhar da sua visão. Mas o resto da tripulação não o importava muito, quando a sua crença era maior que o céu inteiro.
Era Maio. O sol começava a erguer-se acima das ondas. Reflectia-se nelas e como um espelho partido, inundava a embarcação de reflexos. Começava mais um dia e ele era calador. Trata-se de uma missão simples, lançar as redes de pesca ao mar. Simples para Isíldo. Muitos homens antes dele lançaram redes, mas nenhuma trazia tanto peixe quanto as suas. Nem tudo pode ser atribuído ao acaso, o resto da tripulação sabia-o e Isíldo era respeitado naquele navio. A sua missão era aquela, lançar e vigiar as redes. Nada mais fazia e nada mais queria fazer, gostava assim.
No entanto, quem conhecia melhor o calador podia perceber uma pequena diferença no seu entusiasmo recentemente. Os seus gestos estavam mais vívidos, o seu olhar mais aguçado. A razão era as redes, ou melhor, o que elas traziam. Com tanta fome mais ninguém se deu conta, mas ultimamente, para lá do peixe, aquelas cordas traziam pérolas. Umas amarelas, outras vermelhas, outras verdes. Uma por cada vez que a rede subia. Vinham atadas delicadamente, sempre com o mesmo nó, coisa que peixe não fazia.

Passaram-se meses. Um pequeno saco debaixo da sua cama estava cheio daquelas preciosidades. Guardava-o cuidadosamente e todos os dias, cuidadosamente, acrescentava mais uma. É que, pouco depois de as notar, o calador começou a atar objectos à rede sempre que a lançava ao mar. Foi um palpite, quis ver o que acontecia. Aconteceu. Primeiro foi um pente e quando a rede subiu, no seu lugar estava uma pérola. Depois uma navalha de barbear, depois uma meia. De todas as vezes recebeu pérolas de volta. Claro que a perda destes bens levou a que se tornasse no mais barbudo e despenteado homem no navio. Não se importava. Quando já não tinha mais o que atar, começou a escrever. A caneta era emprestada, mas as histórias daquelas cartas, repletas de detalhe e encanto, nasciam das suas próprias mãos. Escrevia sobre os seus dias na terra, de como eram belas as florestas onde cresceu e do quão rico seria o seu futuro. Escrevia-o sabendo que pouco sabia, se alguém as leria, se falaria a mesma língua, se as receberia de todo. Mas acreditava: entre uma sereia e um monstro algo existia e era mágico pela certa.
O tempo continuava a passar. Um saco já não chegava para todas as pérolas que tinha e o papel findara. Era um sinal, talvez mesmo escrever já não fosse suficiente.
Ágil que era com as redes, não foi difícil dar um nó em si mesmo. Não havia mais nada em que pensar. Atirou-se ao mar. Queria falar-lhe. A água quebrou facilmente ao seu peso e afundou-se. Atravessou um cardume. Afundava-se mais. O rosto dos marinheiros que, na berma do navio o espreitavam, encolhia.
O mar estava cada vez mais escuro.
O mar era cada vez mais frio.
Ele ia morrer.
Ele acordou com uma pérola entre os dedos e um estetoscópio no peito.

As preocupações de um filho de pescador

Dizem que nasceu uma criança da união do pescador má-la ondina.* Tremi quando soube. A minha Maria não me dá descanso, há anos que tentamos e ainda não tivemos um filho. Já enamorei outras raparigas e também elas ficaram sem plantar rebento. Talvez seja problema meu. Agora, mal a minha Maria saiba da notícia do recém-nascido que apareceu à porta do internato, seja ele filho de pescador ou não, vai querer resgatá-lo. Já não seria a primeira vez.
O meu pai foi pescador, ser pescador é honrado. Eu, que sempre tive medo do mar, saí carpinteiro, faço-lhes os barcos. Ter um filho que fosse filho de pescador seria como ter um irmão, mas o meu sangue não seria o dele e as manias seriam outras. Eu não quero um rapaz com vontade de se atirar ao mar e lá ficar.
O meu rapaz teria aversão à espuma das ondas e fazer-me-ia companhia na carpintaria. Mas Deus não quer. Que mal Lhe terei feito eu? Setenta e oito barcos e navios construí, já levaram e trouxeram muito peixe. Não fosse eu e não haveria pé para a valentia dos outros. Ou Deus quer que passemos fome? Que morra toda a aldeia com o estômago nas costas?
A minha Maria chega e diz o que eu temia: "Manuel, um pescador abandonou o seu filho à porta do internato. Tem dias e mal abre os olhos, nós podíamos ser pais para ele".
Como se fosse fácil... Eu olho-a e o mesmo olhar triste e expectante doutras vezes reflecte o meu ar apreensivo. Já não era capaz de a silenciar com um estalo. Hoje não, que também a ideia me passara pela cabeça, ainda que por medo da sua sugestão. Talvez seja verdade que filho meu não vai existir, talvez só assim. Talvez deva dizer que sim de uma vez por todas e talvez o miúdo seja ajuizado.
Passaram cinco minutos sem que dissesse palavra. A sala estava silenciosa e a minha Maria matinha os olhos pregados no meu rosto. Entre todas as dúvidas, nem me apercebera do tempo. Dela.
Respondi-lhe.


*Frase do "O País das Uvas" (pág. 109) de Fialho d'Almeida, 1946.

O Magnífico Compêndio Milenar da Cozinha Mundial

Tinha três mil quinhentos e quarenta e dois anos, sem querer.
Quanto tinha sessenta anos, perdeu todos os seus bens no divórcio de Jacinta, a sua segunda mulher. Ficou sem casa e sem carro. Não tinha filhos nem amigos. Não era particularmente boa pessoa. Tinha uma amante que o abandonou quando o viu caído em miséria. Estava só. Consequentemente, dormiu várias noites na rua, alimentando-se da generosidade de Isildo, outro sem-abrigo que tomou pena do velho. Foi ele quem lhe falou de uma clínica ali perto que estava à procura de cobaias humanas. Segundo Isildo, não era muito doloroso. O pior que lhe acontecera fora caírem-lhe as unhas. "Mas é tempo que poupo, não tenho nada para cortar e até é higiénico!".
Pagavam bem, pensava para si mesmo, e o seu estômago já há muito que resmungava por uma refeição quente. Não tinha nada a perder.
À entrada explicaram-lhes que iriam testar uma droga que visava o rejuvenescimento da pele. A beleza é muito importante. Entre o anúncio e as injecções não passou muito tempo. Pesaram-no, tiraram algumas medidas e fotografias. Coisas rotineiras, pareceu-lhe. Voltou para a rua. Nesse dia o jantar foi requintado.
Passaram-se alguns anos sem que suspeitasse de nada. O seu tempo de cobaia fora curto e estava convencido de que nada daquilo tivera qualquer consequência. Mantinha as mesmas rugas, o mesmo cansaço, a mesma ausência de cabelo e o pouco que tinha continuava branco. Para sua sorte, conseguira arranjar um emprego num restaurante. Não que servir às mesas lhe agradasse ou tivesse algum jeito, mas pelo menos estava perto de comida. Ao que parecia, tanta fome tinha-lhe aguçado os sentidos.
Contava ele oitenta e cinco anos certos. Era uma sexta-feira de pouco movimento e Bizâncio, o dono do restaurante, chamou-o à parte. Bizâncio, com um olhar sério, disse: "Isto não é fácil dizer. Quer dizer, nós gostamos muito de ti aqui, mas de boa consciência não te podemos ter mais. Não é que trabalhes mal, estou só a dizer que devias ir aproveitar a vida enquanto a há. Nunca tiraste umas férias e já são merecidas. Vai lá! Com o subsídio de desemprego podes viajar pelo país inteiro. Vai lá!". Ele olhava o patrão sem saber como responder. Ali, estático, nada lhe parecia muito verdadeiro, como se não existisse um antes do restaurante, nem um depois.
Mas existiu um depois. Viajou, como lhe impusera Bizâncio. Conheceu outros sítios, outros restaurantes, trabalhou em alguns à espera de morrer, mas nem as rugas avançavam nem a morte o ceifava. Quando dizia ter cento e sessenta anos já ninguém acreditava em si. A certa altura, até ele mesmo duvidou do facto. Passou a usar um espelho no pulso, como um relógio. Queria encontrar diferenças no seu rosto, mas sempre sem sucesso.
Continuou a viver. Mais quinhentos, mais mil anos... Por essa altura já visitara grande parte do mundo, vira nascer e morrer centenas de magníficos chefes de cozinha, aprendera com uns e ensinara alguns outros. A comida era a sua paixão, não beijou mais ninguém. O único gesto semelhante, fazia-o para arrefecer a comida na sua colher. E passaram mais mil anos.
Escreveu um livro: "O Magnífico Compêndio Milenar da Cozinha Mundial", tinha 10.989 páginas. Passou cem anos a promovê-lo. Foi a obra da sua vida. Até ali, pelo menos.
Viajou mais, foi até aos últimos recantos da terra, conheceu novas receitas e viu-se na obrigação de publicar uma errata de setecentas e sessenta e cinco páginas. Mais cinco anos para a divulgar apropriadamente.
Ali, no ano de quatro mil setecentos e noventa e três d.C., já ninguém morria ou envelhecia. Os cientistas demoraram, mas voltaram a cruzar-se com a mesma substância que o tornara eterno. Desconstruíram-na, multiplicaram-na, disponibilizaram-na. Agora toda a gente tem tempo infinito e toda a gente é muito boa em alguma coisa. Ele é muito bom cozinheiro.
Ele foi muito bom cozinheiro por outros setecentos e sessenta e dois anos, só que sem crianças para ver crescer, ensinar e morrer, o seu propósito estava a acabar. Já todos haviam provado as suas receitas. Todos tinham tanto tempo que em cada família havia alguém que cozinhava tão bem quanto ele. Tornara-se mestre de uma arte banal. Já nem o seu nome lhe fazia sentido.
Finalmente queria morrer, mas viveu três mil quinhentos e quarenta e dois anos mais.

Homem-frigorífico Ilustrado





*O João disse que o último texto gritava,
quase afónico, por imagens. Eu não o quis deixar sem voz.

Homem-frigorífico

Abriu-lhe a barriga, serviu-se do sumo de laranja e fechou-lha novamente. Aurora via infinitas vantagens em ter um frigorífico sempre disponível. Já Alberto, ainda não se acostumara a que lhe mexessem nas entranhas. Quer dizer, gostava, mas depois do acidente que o tornou num homem-frigorífico - caso único no mundo -, pensou que nunca mais encontraria intimidade.
No início escusava-se de se deitar. Limitava-se a ficar sentado sobre a cama, abrindo e fechando a sua porta: era uma forma de se acostumar ao seu novo corpo e, enfim, a luz que intermitentemente acendia dentro do seu peito, confortava-o. Sentia que ainda vivia, nem precisava de ter medo do escuro, apenas da solidão. E tinha muito medo de ser só. Alberto sempre fora um homem dado a afectos, mas agora, só lhe restavam os seus. Dias sem sono fizeram crescer olheiras como montanhas. Tantas foram as dores, que deixou de falar com a família, com os amigos ou conhecidos, não saía da casa, não queria aparecer na televisão nem no jornal. Não queria nada.
Passou-se quase um ano e só não morreu de fome porque não precisava de se alimentar. Desde que se tornara um homem-frigorífico, tinha sempre comida nas prateleiras. Aparecia de forma mágica e nem precisava de a digerir. Logo ele, que tanto apreciava uma bela jantarada. Amaldiçoou-se vezes sem conta. A raiva era tanta que a aceitação da sua condição demorou outro ano, mas chegou. E com uma ideia.
Quando finalmente saiu à rua, as suas pupilas contraíram-se tanto que ficou sem ver durante longos minutos, e a sua pele, pálida e ferida pelas lágrimas, estalou aos primeiros raios de sol. A dor não lhe interessava. Sabia para onde queria ir e o que fazer. Caminhou quase sete quilómetros desde sua casa até um bairro onde crianças jogavam à bola, descalças. Alberto sentou-se e foi frigorífico. Não homem, apenas frigorífico. As crianças, lentamente, foram-se dando conta da presença daquele electrodoméstico. Destacava-se pela luz que reflectia no meio dos prédios escuros. Aproximaram-se. O cheiro da comida acelerou-lhes o passo. Tinham almoço! Eram pobres, os pequenos. Naquele bairro de casas improvisadas só morava quem nunca teve sorte. Mas aquelas crianças, enquanto se serviam da barriga de Alberto, sentiram-se especiais.
Decidiu voltar todos os dias. À hora de almoço lá estava. Os miúdos, mal davam pela sua presença, organizavam-se numa pequena fila indiana e serviam-se. Havia até alguns que já tinham pratos, improvisados de embalagens de plástico.
Foi lá que conheceu Aurora, mãe de Manuel, o rapaz das fintas. No dia anterior puxara as orelhas ao seu filho por inventar histórias. "Não há homens-frigorífico, nem frigoríficos andantes de onde nasce comida!". "Mas é verdade, mãe.". E era verdade. Agora, que tinha ali Alberto à sua frente, envergonhava-se por não ter acreditado no seu rebento. Só em parte, porque a outra parte da vergonha era mais primitiva. Achava-o bonito e queria dizer-lhe olá. Só não sabia como. Não sabia. Corou. Fingiu uma sede e aproximou-se: "Desculpe, não terá uma água, por favor?".
Sobressaltado, Alberto olhou-a, hesitou, atrapalhou-se, estendeu a mão e deu-lhe uma água. "Aqui tem". Quis acrescentar dizeres sobre a beleza daquela rapariga, mas sentia-se envergonhado e não sabia que palavras acrescentar. Não sabia. Olhou-a e.
Passaram-se duas semanas.
Alberto via-a beber o sumo de laranja e pensava nas noites que passou sozinho, sem ela, mas agora que estava ali, até essas pareciam fazer sentido.
Eu pensei voltar, mas os sítios também fogem.

Gaita de Foles



Há pássaros que ainda descansam nos ninhos encharcados pelo orvalho. Os primeiros raios de sol começaram a romper pela copa das árvores há alguns minutos. Amanhece calmamente. É domingo e na aldeia ninguém trabalha.
Sem outro aviso, um coro magistral de gaitas de foles começa a sua melodia. São seis da manhã e todos sabem do que se trata. O dia é de festa. As ruas vibram com aquelas notas e uns metros acima, nos ramos, os pássaros despertam. Amanhece lindamente.
Para Manuel a história era outra. A melodia, ainda que sinal de festa, já se repetia há oitenta e dois anos e embora nem a recente artrite o tenha impedido de festejar nos últimos anos, as dores de coração são outra questão. Viúvo há duas décadas, nunca um dia passou sem que rezasse ao Santo Pedro para que mantivesse a sua Maria no lado de dentro do paraíso. Era com ela que iria ter não tardaria. Mas naquela manhã, o que lhe despedaçava o coração era Matilde, a filha da sua filha.
A beleza da aldeia - título, aliás, confirmado pelo Concurso da Miss Universo da Tasca do Hermano - Matilde, havia-se apaixonado pelo mais bêbado dos gaiteiros, António. Homem que nem sequer era bem parecido, tinha um nariz tão exageradamente desproporcional que ganhou o apelido de "Trambolho".
O que viram os olhos azuis de Matilde nas pernas bambas de António, ninguém entendeu. Discutiu-se, coscuvilhou-se, houve rumores de uma história de amor que remontava aos primeiros anos de infância, mas todas eram teorias fugazes. Estórias de entreter. A verdade é que Matilde encontrara o gaiteiro uma noite, junto a um poço. Cantava baixinho. O rosto iluminado pelo luar dava-lhe umas feições quase humanas, tão raramente vistas. Ele viu-a. Ela não fugiu. Falaram durante horas. Ele nem sempre estava bêbado. Sem dar por isso, foram-se falando durante dias e meses, sem que ninguém soubesse, até que a luz do luar já não era suficiente para as conversas e quando aquele amor viu a luz do dia, todos se descoseram em remotas hipóteses inventadas.
Faz hoje precisamente um ano que Manuel, também ele com o seu copo a mais - afinal era festa - pegou no pulso da sua neta e lhe perguntou o que todos pensavam, acrescentando: e proíbo-te de voltares a ver esse valdevino! Ela chorou, primeiro lágrimas violentas para se soltar da mão do velho, depois fungos discretos enquanto saía do salão da paróquia. Não a viu desde então. Ainda houve quem levasse Manuel a casa, que embriagado de arrependimento mal caminhava. Outros confortavam-no dizendo azedices do gaiteiro, mas já nada consolava aquele homem.
Faz hoje um ano que tudo aconteceu e amanhecer com o sopro do bêbado na gaita dava-lhe náuseas. Sentia saudades da sua pequena. Afinal foi ele quem a criou, pois os pais tanto tempo passaram no campo que lhe coube o trato da criança. Dela escutou as primeiras palavras, ensinou-lhe a atirar um pião e a tocar acordeão. Sentia falta do acordeão.
A música dos gaiteiros continuava e Manuel, como o seu coração, partia-se entre o amor por um e o ódio pelo outro. Diabo falou-lhe ao ouvido. Vestiu-se, agarrou num machado, e mais lentamente que o ideal, começou a subir a colina em direcção aos gaiteiros. Ia cortar o maldito do nariz ao António. E a cabeça. Decidiu. Subia.
Demoradamente.
Quando avistou os gaiteiros, para sua surpresa, António não tocava como nos anos anteriores. Estava de joelho apoiado no chão e mão erguida. Não entendeu imediatamente o que se passava. Foi caminhando, usando o machado como bengala. Estava cansado. Viu a sua Matilde. Estava à janela com um sorriso de uma ternura que ele desconhecia, mesmo nela. Não que Matilde não fosse doce, mas a forma como lhe brilhavam os olhos era nova, era paixão. Depois entendeu! O filho-da-mãe do gaiteiro segurava um anel na ponta dos dedos e pedia a sua neta em casamento. Ao aperceber-se, Manuel agarrou com toda a força no machado, ergueu-o e atirou-o para cima do telhado mais próximo. Correu até à sua neta ainda a tempo de a ver deixar cair, mais uma vez, lágrimas. Estas lindas. Trocaram olhares e o velho estava de tal forma comovido que ela saltou da janela para o abraçar. Abraçaram-se. Matilde aproximou-se do gaiteiro e beijou-lhe os lábios. A melodia rompeu em festa, os homens gritaram: temos casório!
Era o início daquela família.
Dali em diante, durante anos a fio, uma praga de malmequeres invadiu todos os telhados daquela rua. Distribuíam-se em forma de machado e as mulheres achavam romântico. Mas as constantes infiltrações causadas pelas raízes das plantas fizeram com que os homens, no dia da festa, procurassem pelo machado atirado. Decerto a maldição seria quebrada. O machado nunca foi encontrado.


*Conto inspirado pela "Alvorada", dos Cardo-Roxo. E a eles dedicado.

1971

Esta rua não é a minha.
Tem as mesmas janelas,
a mesma vida, a mesma calçada desenhada,
mas é decerto outra rua qualquer.
A idade pesa e é decerto outra rua qualquer.

Continuo o caminho.
Nos vidros há reflexos
que têm as minhas rugas,
as minhas mãos, os meus olhos e os meus sonhos,
mas não sou eu.
É decerto outro qualquer.

Agora há um rapaz que me olha
do fundo da rua.
Avança com os meus passos,
fala e gesticula nervoso,
os gestos são os mesmos dos meus,
mas este rapaz que grita ser filho
não é meu.
O meu filho ainda não nasceu.


*Hoje, na Rua Direita, em Viseu, a polícia parou a rua tentando
acalmar um homem de idade, muito bem aprumado. Estava confuso e a rua
foi murmurando a sua história. Eu, sem que me chegasse perto ouvi:
"Tem alzheimer e hoje nem reconhece o filho".

Anos-luz

Milhões de anos-luz. Suspirava.
Mil milhões de anos-luz. Um ano-luz são dez trilhões de quilómetros. Um ano-luz corresponde ao tempo que a luz atravessa num ano que são trezentos e sessenta e cinco ponto vinte cinco dias do calendário implementado por Júlio César quarenta e seis anos antes de Cristo nascer. Um décimo de ano-luz é um milhão de bilão de quilómetros. Um quilómetro tem mil metros. Os meus braços têm pouco menos de metro e meio e não vejo como os esticar para chegarem até ti. Esta estrela é fria e eu estou muito sozinho.

Três Namoradas

Ouve-se uma criança ao fundo da rua. A rua é escura mas a voz é clara. Alguém lhe segura a mão, nota-se pela ternura do gesto que deverá ser sua mãe. A sua mãe parece escutar com paciência enquanto caminham para cá do fundo da rua. As palavras embrulhadas começam a desenhar-se com maior nitidez: Então eu corri atrás dele, mas ele foi mais rápido e fugiu. Depois a Maria olhou para mim e deu-me um beijo e perguntou-me se queriamos ser namorados e eu disse que já tinha duas namoradas e gostava muito que ela fosse a minha terceira namorada. Mãe, o amor à terceira é que é de vez, não é? O senhor Albertino é que está sempre a dizer que as coisas à terceira é que são e eu já sei contar até cinco, mas com a Maria não precisava de contar até tanto, porque ela é a mais bonita de todas as namoradas e os olhos dela são azuis e tem o cabelo longo. Mãe, a Maria pode ir lá brincar a casa na sexta à tarde?
Manuel, tu tens é que aprender a fazer contas de subtrair, que só podes ter uma namorada de cada vez!
Aquela rua era longa.

Pé Direito

Cimento

O sol poente entra pela janela nua. Os restos de um dia quente e trabalhoso estão ainda espalhados pelo chão e nas paredes, onde há alguns minutos ecoavam vozes num sotaque beirão, descansa apenas o cimento fresco.
O silêncio era ocasionalmente perturbado por um carro distante, mas foi uma voz masculina que ecoou pelo quarto vazio afirmando como as coisas se estavam a compor. A escutá-lo do aro da porta estava uma presença feminina que, apesar de silenciosa, transparecia emoção nos seus gestos. A voz masculina, profunda, estendeu-se por mais alguns minutos: um sonho de criança - e porque não uma criança - a mobília que viria, a cor para as paredes e as noites perfeitas que se seguiriam dali para a frente e como dali para a frente é que tudo contava.
Não sei precisar o momento exacto da conversa em que a presença feminina, esguia e com os olhos a florir, se aproximou da voz masculina para lhe dar a mão, sei precisar no entanto as três horas e dezassete minutos que os dois ficaram sentados perto da janela a olhar a paisagem, gradualmente mais escura. Avança a noite. Gradualmente mais clara. A iluminação de rua.
Talvez pelo cansaço após um dia laboral, ou simplesmente porque há horários rotineiros que devem ser cumpridos, a voz masculina e a presença feminina saíram finalmente da divisão, depois da casa. Depois da rua, abandonando o espaço ao cantar dos grilos, progressivamente mais sonantes com a chegada definitiva da noite.


Branco

É primavera. Sente-se não apenas pelas árvores que, para lá da janela, florescem, mas também pelos sorrisos que, deste lado, brotam. Entre a primavera e brincadeiras mimadas de quem está ainda terrivelmente apaixonado existe uma cortina branca, fina, da mesma cor da parede. Todo o quarto fica banhado por uma aura clara sempre que o sol sobe acima das montanhas. Era um desses momentos.
Uma voz masculina espreguiçou-se ainda debaixo dos lençóis. Esticou-se mais até que sentisse cada pedaço dos seus músculos desentorpecer e sossegou novamente. Ao seu lado, uma presença feminina, a mesma de sempre que para bem deste conto, e pela forma como se ilumina, apelidaremos de Aurora. Um daqueles nomes intuitivos, ou preguiçosos, que surge da mesma forma que o Farrusco, que é um cão, ficou Farrusco por ser, bem, Farrusco.
Mas a Aurora. A menina que ilumina. Aurora espreguiçara-se logo a seguir, contagiada pelo bocejo do seu marido. Ainda não se habituara à palavra: marido. Quanto à sua noite foi mal passada. Dormiu pouco, tudo às custas de um segredo que quis guardar mais tempo do que aquele que parecia poder suportar. Deu-lhe uma data, contudo. Hoje o segredo deixaria de ser segredo. Levantou-se e apressou-se para a casa de banho.
Ele, ainda a saborear os primeiros minutos da manhã, deixou-se ficar quieto entre os lençóis a ouvir o chilrear dos pássaros, particularmente activos nesta altura do ano. Teria de ir trabalhar. Ficou mais um pouco antes de se despedir com um beijo habitual e sair já à pressa de casa. Ela trancaria a porta algum tempo mais tarde, o dia era de folga, mas não contara a ninguém.
Do interior da casa podiam escutar-se os primeiros grilos, sabe-se por isso que a noite começara a cair e que a cortina, apesar de branca, não impediria os últimos raios de sol de aquecerem o tom às paredes, alaranjando-a.
Aurora tinha cabelos claros e caracóis definidos, tudo boas características, não se lhes aliasse a elas uma ponta de rebeldia que nos melhores dias a fazia parecer completamente desajeitada. Em geral não se preocupava, mas não hoje. Hoje era uma ocasião especial. Passou horas à volta de cremes, pentes e secadores à procura do cânone certo de beleza. Acabaria por o encontrar. Preparou a mesa de jantar para dois e não dispensou as velas ao centro da mesa, secretamente compradas.
Ele chegou finalmente. Desatento, não estranhou o tremelicar da luz das velas sobre a porta de entrada, foi antes o aprumo da sua mulher que lhe fez cair o queixo e o cansaço. Articulou um: estás muito bonita, baixinho. Ela segurou-o pela mão e indicou-lhe a cadeira. Sentaram-se e serviram-se em silêncio. O jantar ficara um pouco torrado, mas havia coisas maiores dentro daquela noite.
Terminaram a refeição. Ela sorriu-lhe e anunciou que tinha algo para contar. Ele, ainda hipnotizado com todo o seu requinte, acenou-lhe um sim. Aurora disse por fim: Estou grávida.
Correram até ao quarto e fizeram amor novamente.


Rosa

Faz frio e o frio é quebrado por um choro estridente. Ao fundo ouve-se uma pancada muda seguida de um gemido. Ele aproxima-se e segura-a ao colo. O choro cessa. A casa parece retomar o mesmo sossego de alguns minutos atrás, talvez mais confortável. Com certeza mais segura. Percebe-se pela silhueta proporcionada pelo luar que a bebé tem exactamente os mesmos caracóis da mãe. Talvez do pai tenha herdado a voz capaz. Ele sentou-se na cadeira junto ao berço e ficaram no conforto um do outro até amanhecer, a uma hora dali.
A manhã trouxe um novo mundo. O quarto, antes dos pais, agora da pequena, estava muito diferente. Em grande parte, senão tudo, para acomodar o bem-estar do novo rebento. Paredes rosa, cortinas ilustradas, vários peluches pelo chão e outros a treparem pela cama, o sonho de qualquer criança.
Aurora, qual amanhecer perfeito, entrou pelo quarto e deixou-se enternecer pelo cenário encontrado. Não o da desarrumação do espaço, mas sim o do pai a segurar nos braços a sua filha. Era simples, estavam ali as duas pessoas mais importantes de todo o mundo. Ele, amor à primeira vista, ela, doze horas de parto para a melhor dádiva que existe.
Estava na hora do infantário.


Papel de Parede

Bateu com a porta e saiu de repente. A Pequena Aurora completara a maioridade fazia já três anos. Ele, com a mesma voz profunda, confortou-a dizendo: não te preocupes, é só um amuo, daqui a nada volta para pedir desculpa, como sempre.
Aurora e o seu marido, ele um pouco mais careca, ela com o mesmo sorriso, mas o dobro das rugas, repousavam na renovada sala - antigo quarto da Aurorinha. A janela manteve-se quieta durante todos estes anos, foi sim o seu interior que se mostrou permeável às constâncias de uma vida. Hoje o sofá aponta para a televisão ao canto. As cortinas são rendadas à mão e a parede foi coberta com um papel repleto de flores. A tentativa era trazer o jardim para dentro de casa. O resultado não foi muito feliz, mas dizê-lo seria falso pois nos seus rostos não se decifrava senão agrado.
É do tijolo, porventura, ou da parede. Creio ser isso. É da parede, incrível ostentadora de sonhos. Forte e protectora, verdadeiro braço da família.
Assim permaneceram, sentados no sofá comum. Conversavam palavras calmas depois do estrondo. Algumas sobre o passado repetiam pequenos arrependimentos, viagens por fazer, decisões que ficaram por tomar, no entanto as suas vozes ecoavam realmente quando pronunciavam as histórias vividas. O dia no lago e as peripécias. O Alentejo. O primeiro dia na casa nova. Os grilos. As primaveras. As férias. A notícia da Pequena Aurora. A Aurorinha. O seu aniversário. O seu choro. Os primeiros passos. As primeiras palavras. As primeiras vezes.
As suas mãos enlaçaram-se até que anoitecesse, embebidos pela ternura das suas memórias. Mais tarde, a porta que outrora estalara em raiva, abria agora em mil desculpas. Todos sorriram. Aninharam-se no sofá. E mais do que as histórias que se contaram, contaram as histórias que dali se fizeram.

*Texto escrito em 2010 e publicado no livro "Páginas Lentas", colectânea que reuniu obras de vários autores.