Se Babel não acabasse

"Ele vivia no prédio mais alto da mais alta cidade do mundo. Ela não tinha um braço e bailava porque para dançar bastam pernas e os olhos dos homens. Em Chamat havia muitos homens."
Naquele planeta a vida foi passando com eles. Mataram quem precisaram matar para conseguir o que ansiavam conseguir. Conseguiram tudo. Era um mundo diferente, mas as leis são universais. Pareciam ter tudo o que desejavam, até um ao outro - com direito a registo de propriedade privada assinado - tinham uma vista sobre a cidade, um carro, o melhor vinho e as melhores drogas. Experimentaram tudo. Chamava-se NAVE, a nova droga. Não se sabiam ao certo os efeitos que provocava, mas pelos relatos que circulavam nas ruas podiam ser magníficos e devastadores. Ou apenas devastadores. A rua não tinha muitas certezas. Eles, ansiosos por agarrar mais um pedaço de vida, não hesitaram em fazer parte da nova experiência. Envenenados foram ao cinema, riram de si mesmos, viajaram mais e despistaram-se.
A morte, como em todos os sonhos, despertou-os.
As alucinações pareceram durar apenas alguns minutos, mas quando abriram os olhos os corpos estavam velhos. O cabelo dele era inexistente, o dela estava branco como nos pólos, o prédio de mil andares tinha apenas três, a vista era para uma floresta, mas não de metal. As pernas, essas, estavam cobertas por uma manta fina. Estavam ambos em cadeiras de rodas, já não andavam há muitos anos. Ao olharem um para o outro sorriram e deram a mão, muito lentamente, que era o ritmo natural dos seus gestos. Tinham as veias furadas e estendidas por um pequeno tubo até um saco suspenso numa espécie de cabide de metal andante.
Ele olhou-a e, roucamente, disse: "Século dezanove. Tu és filha dum visconde, uma mulher delicada, mas decidida, muito bonita. Eu sou barbeiro, o melhor de todos, que mesmo as mulheres almejam ter o seu cabelo cortado por mim. Eu apenas aceito cortar o teu. Entendido?"
Ela respondeu: "Sim. Desta vez ninguém morre. E a casa do visconde, a minha, é junto à praia." Ele anuiu e com a mão esquerda carregou no botão que trazia consigo. Ela fez o mesmo e outra gota de morfina desceu pelo tubo de plástico. Adormeceram.
As enfermeiras já estavam habituadas a este ritual. Por vezes reparavam no casal a falar-se e pouco depois a adormecer simultaneamente. Nunca entenderam bem o porquê, mas nenhuma se deu ao trabalho de lhes perguntar. Eram velhos.


*Babel é um texto de Letizia Russo, encenado por Sónia Barbosa. A peça de teatro que tive oportunidade de acompanhar de perto, estreou hoje, a 7 de Setembro de 2013. Este texto é uma possível continuação do que lá vi.