As preocupações de um filho de pescador

Dizem que nasceu uma criança da união do pescador má-la ondina.* Tremi quando soube. A minha Maria não me dá descanso, há anos que tentamos e ainda não tivemos um filho. Já enamorei outras raparigas e também elas ficaram sem plantar rebento. Talvez seja problema meu. Agora, mal a minha Maria saiba da notícia do recém-nascido que apareceu à porta do internato, seja ele filho de pescador ou não, vai querer resgatá-lo. Já não seria a primeira vez.
O meu pai foi pescador, ser pescador é honrado. Eu, que sempre tive medo do mar, saí carpinteiro, faço-lhes os barcos. Ter um filho que fosse filho de pescador seria como ter um irmão, mas o meu sangue não seria o dele e as manias seriam outras. Eu não quero um rapaz com vontade de se atirar ao mar e lá ficar.
O meu rapaz teria aversão à espuma das ondas e fazer-me-ia companhia na carpintaria. Mas Deus não quer. Que mal Lhe terei feito eu? Setenta e oito barcos e navios construí, já levaram e trouxeram muito peixe. Não fosse eu e não haveria pé para a valentia dos outros. Ou Deus quer que passemos fome? Que morra toda a aldeia com o estômago nas costas?
A minha Maria chega e diz o que eu temia: "Manuel, um pescador abandonou o seu filho à porta do internato. Tem dias e mal abre os olhos, nós podíamos ser pais para ele".
Como se fosse fácil... Eu olho-a e o mesmo olhar triste e expectante doutras vezes reflecte o meu ar apreensivo. Já não era capaz de a silenciar com um estalo. Hoje não, que também a ideia me passara pela cabeça, ainda que por medo da sua sugestão. Talvez seja verdade que filho meu não vai existir, talvez só assim. Talvez deva dizer que sim de uma vez por todas e talvez o miúdo seja ajuizado.
Passaram cinco minutos sem que dissesse palavra. A sala estava silenciosa e a minha Maria matinha os olhos pregados no meu rosto. Entre todas as dúvidas, nem me apercebera do tempo. Dela.
Respondi-lhe.


*Frase do "O País das Uvas" (pág. 109) de Fialho d'Almeida, 1946.