O Magnífico Compêndio Milenar da Cozinha Mundial

Tinha três mil quinhentos e quarenta e dois anos, sem querer.
Quanto tinha sessenta anos, perdeu todos os seus bens no divórcio de Jacinta, a sua segunda mulher. Ficou sem casa e sem carro. Não tinha filhos nem amigos. Não era particularmente boa pessoa. Tinha uma amante que o abandonou quando o viu caído em miséria. Estava só. Consequentemente, dormiu várias noites na rua, alimentando-se da generosidade de Isildo, outro sem-abrigo que tomou pena do velho. Foi ele quem lhe falou de uma clínica ali perto que estava à procura de cobaias humanas. Segundo Isildo, não era muito doloroso. O pior que lhe acontecera fora caírem-lhe as unhas. "Mas é tempo que poupo, não tenho nada para cortar e até é higiénico!".
Pagavam bem, pensava para si mesmo, e o seu estômago já há muito que resmungava por uma refeição quente. Não tinha nada a perder.
À entrada explicaram-lhes que iriam testar uma droga que visava o rejuvenescimento da pele. A beleza é muito importante. Entre o anúncio e as injecções não passou muito tempo. Pesaram-no, tiraram algumas medidas e fotografias. Coisas rotineiras, pareceu-lhe. Voltou para a rua. Nesse dia o jantar foi requintado.
Passaram-se alguns anos sem que suspeitasse de nada. O seu tempo de cobaia fora curto e estava convencido de que nada daquilo tivera qualquer consequência. Mantinha as mesmas rugas, o mesmo cansaço, a mesma ausência de cabelo e o pouco que tinha continuava branco. Para sua sorte, conseguira arranjar um emprego num restaurante. Não que servir às mesas lhe agradasse ou tivesse algum jeito, mas pelo menos estava perto de comida. Ao que parecia, tanta fome tinha-lhe aguçado os sentidos.
Contava ele oitenta e cinco anos certos. Era uma sexta-feira de pouco movimento e Bizâncio, o dono do restaurante, chamou-o à parte. Bizâncio, com um olhar sério, disse: "Isto não é fácil dizer. Quer dizer, nós gostamos muito de ti aqui, mas de boa consciência não te podemos ter mais. Não é que trabalhes mal, estou só a dizer que devias ir aproveitar a vida enquanto a há. Nunca tiraste umas férias e já são merecidas. Vai lá! Com o subsídio de desemprego podes viajar pelo país inteiro. Vai lá!". Ele olhava o patrão sem saber como responder. Ali, estático, nada lhe parecia muito verdadeiro, como se não existisse um antes do restaurante, nem um depois.
Mas existiu um depois. Viajou, como lhe impusera Bizâncio. Conheceu outros sítios, outros restaurantes, trabalhou em alguns à espera de morrer, mas nem as rugas avançavam nem a morte o ceifava. Quando dizia ter cento e sessenta anos já ninguém acreditava em si. A certa altura, até ele mesmo duvidou do facto. Passou a usar um espelho no pulso, como um relógio. Queria encontrar diferenças no seu rosto, mas sempre sem sucesso.
Continuou a viver. Mais quinhentos, mais mil anos... Por essa altura já visitara grande parte do mundo, vira nascer e morrer centenas de magníficos chefes de cozinha, aprendera com uns e ensinara alguns outros. A comida era a sua paixão, não beijou mais ninguém. O único gesto semelhante, fazia-o para arrefecer a comida na sua colher. E passaram mais mil anos.
Escreveu um livro: "O Magnífico Compêndio Milenar da Cozinha Mundial", tinha 10.989 páginas. Passou cem anos a promovê-lo. Foi a obra da sua vida. Até ali, pelo menos.
Viajou mais, foi até aos últimos recantos da terra, conheceu novas receitas e viu-se na obrigação de publicar uma errata de setecentas e sessenta e cinco páginas. Mais cinco anos para a divulgar apropriadamente.
Ali, no ano de quatro mil setecentos e noventa e três d.C., já ninguém morria ou envelhecia. Os cientistas demoraram, mas voltaram a cruzar-se com a mesma substância que o tornara eterno. Desconstruíram-na, multiplicaram-na, disponibilizaram-na. Agora toda a gente tem tempo infinito e toda a gente é muito boa em alguma coisa. Ele é muito bom cozinheiro.
Ele foi muito bom cozinheiro por outros setecentos e sessenta e dois anos, só que sem crianças para ver crescer, ensinar e morrer, o seu propósito estava a acabar. Já todos haviam provado as suas receitas. Todos tinham tanto tempo que em cada família havia alguém que cozinhava tão bem quanto ele. Tornara-se mestre de uma arte banal. Já nem o seu nome lhe fazia sentido.
Finalmente queria morrer, mas viveu três mil quinhentos e quarenta e dois anos mais.