Gaita de Foles



Há pássaros que ainda descansam nos ninhos encharcados pelo orvalho. Os primeiros raios de sol começaram a romper pela copa das árvores há alguns minutos. Amanhece calmamente. É domingo e na aldeia ninguém trabalha.
Sem outro aviso, um coro magistral de gaitas de foles começa a sua melodia. São seis da manhã e todos sabem do que se trata. O dia é de festa. As ruas vibram com aquelas notas e uns metros acima, nos ramos, os pássaros despertam. Amanhece lindamente.
Para Manuel a história era outra. A melodia, ainda que sinal de festa, já se repetia há oitenta e dois anos e embora nem a recente artrite o tenha impedido de festejar nos últimos anos, as dores de coração são outra questão. Viúvo há duas décadas, nunca um dia passou sem que rezasse ao Santo Pedro para que mantivesse a sua Maria no lado de dentro do paraíso. Era com ela que iria ter não tardaria. Mas naquela manhã, o que lhe despedaçava o coração era Matilde, a filha da sua filha.
A beleza da aldeia - título, aliás, confirmado pelo Concurso da Miss Universo da Tasca do Hermano - Matilde, havia-se apaixonado pelo mais bêbado dos gaiteiros, António. Homem que nem sequer era bem parecido, tinha um nariz tão exageradamente desproporcional que ganhou o apelido de "Trambolho".
O que viram os olhos azuis de Matilde nas pernas bambas de António, ninguém entendeu. Discutiu-se, coscuvilhou-se, houve rumores de uma história de amor que remontava aos primeiros anos de infância, mas todas eram teorias fugazes. Estórias de entreter. A verdade é que Matilde encontrara o gaiteiro uma noite, junto a um poço. Cantava baixinho. O rosto iluminado pelo luar dava-lhe umas feições quase humanas, tão raramente vistas. Ele viu-a. Ela não fugiu. Falaram durante horas. Ele nem sempre estava bêbado. Sem dar por isso, foram-se falando durante dias e meses, sem que ninguém soubesse, até que a luz do luar já não era suficiente para as conversas e quando aquele amor viu a luz do dia, todos se descoseram em remotas hipóteses inventadas.
Faz hoje precisamente um ano que Manuel, também ele com o seu copo a mais - afinal era festa - pegou no pulso da sua neta e lhe perguntou o que todos pensavam, acrescentando: e proíbo-te de voltares a ver esse valdevino! Ela chorou, primeiro lágrimas violentas para se soltar da mão do velho, depois fungos discretos enquanto saía do salão da paróquia. Não a viu desde então. Ainda houve quem levasse Manuel a casa, que embriagado de arrependimento mal caminhava. Outros confortavam-no dizendo azedices do gaiteiro, mas já nada consolava aquele homem.
Faz hoje um ano que tudo aconteceu e amanhecer com o sopro do bêbado na gaita dava-lhe náuseas. Sentia saudades da sua pequena. Afinal foi ele quem a criou, pois os pais tanto tempo passaram no campo que lhe coube o trato da criança. Dela escutou as primeiras palavras, ensinou-lhe a atirar um pião e a tocar acordeão. Sentia falta do acordeão.
A música dos gaiteiros continuava e Manuel, como o seu coração, partia-se entre o amor por um e o ódio pelo outro. Diabo falou-lhe ao ouvido. Vestiu-se, agarrou num machado, e mais lentamente que o ideal, começou a subir a colina em direcção aos gaiteiros. Ia cortar o maldito do nariz ao António. E a cabeça. Decidiu. Subia.
Demoradamente.
Quando avistou os gaiteiros, para sua surpresa, António não tocava como nos anos anteriores. Estava de joelho apoiado no chão e mão erguida. Não entendeu imediatamente o que se passava. Foi caminhando, usando o machado como bengala. Estava cansado. Viu a sua Matilde. Estava à janela com um sorriso de uma ternura que ele desconhecia, mesmo nela. Não que Matilde não fosse doce, mas a forma como lhe brilhavam os olhos era nova, era paixão. Depois entendeu! O filho-da-mãe do gaiteiro segurava um anel na ponta dos dedos e pedia a sua neta em casamento. Ao aperceber-se, Manuel agarrou com toda a força no machado, ergueu-o e atirou-o para cima do telhado mais próximo. Correu até à sua neta ainda a tempo de a ver deixar cair, mais uma vez, lágrimas. Estas lindas. Trocaram olhares e o velho estava de tal forma comovido que ela saltou da janela para o abraçar. Abraçaram-se. Matilde aproximou-se do gaiteiro e beijou-lhe os lábios. A melodia rompeu em festa, os homens gritaram: temos casório!
Era o início daquela família.
Dali em diante, durante anos a fio, uma praga de malmequeres invadiu todos os telhados daquela rua. Distribuíam-se em forma de machado e as mulheres achavam romântico. Mas as constantes infiltrações causadas pelas raízes das plantas fizeram com que os homens, no dia da festa, procurassem pelo machado atirado. Decerto a maldição seria quebrada. O machado nunca foi encontrado.


*Conto inspirado pela "Alvorada", dos Cardo-Roxo. E a eles dedicado.