Homem-frigorífico

Abriu-lhe a barriga, serviu-se do sumo de laranja e fechou-lha novamente. Aurora via infinitas vantagens em ter um frigorífico sempre disponível. Já Alberto, ainda não se acostumara a que lhe mexessem nas entranhas. Quer dizer, gostava, mas depois do acidente que o tornou num homem-frigorífico - caso único no mundo -, pensou que nunca mais encontraria intimidade.
No início escusava-se de se deitar. Limitava-se a ficar sentado sobre a cama, abrindo e fechando a sua porta: era uma forma de se acostumar ao seu novo corpo e, enfim, a luz que intermitentemente acendia dentro do seu peito, confortava-o. Sentia que ainda vivia, nem precisava de ter medo do escuro, apenas da solidão. E tinha muito medo de ser só. Alberto sempre fora um homem dado a afectos, mas agora, só lhe restavam os seus. Dias sem sono fizeram crescer olheiras como montanhas. Tantas foram as dores, que deixou de falar com a família, com os amigos ou conhecidos, não saía da casa, não queria aparecer na televisão nem no jornal. Não queria nada.
Passou-se quase um ano e só não morreu de fome porque não precisava de se alimentar. Desde que se tornara um homem-frigorífico, tinha sempre comida nas prateleiras. Aparecia de forma mágica e nem precisava de a digerir. Logo ele, que tanto apreciava uma bela jantarada. Amaldiçoou-se vezes sem conta. A raiva era tanta que a aceitação da sua condição demorou outro ano, mas chegou. E com uma ideia.
Quando finalmente saiu à rua, as suas pupilas contraíram-se tanto que ficou sem ver durante longos minutos, e a sua pele, pálida e ferida pelas lágrimas, estalou aos primeiros raios de sol. A dor não lhe interessava. Sabia para onde queria ir e o que fazer. Caminhou quase sete quilómetros desde sua casa até um bairro onde crianças jogavam à bola, descalças. Alberto sentou-se e foi frigorífico. Não homem, apenas frigorífico. As crianças, lentamente, foram-se dando conta da presença daquele electrodoméstico. Destacava-se pela luz que reflectia no meio dos prédios escuros. Aproximaram-se. O cheiro da comida acelerou-lhes o passo. Tinham almoço! Eram pobres, os pequenos. Naquele bairro de casas improvisadas só morava quem nunca teve sorte. Mas aquelas crianças, enquanto se serviam da barriga de Alberto, sentiram-se especiais.
Decidiu voltar todos os dias. À hora de almoço lá estava. Os miúdos, mal davam pela sua presença, organizavam-se numa pequena fila indiana e serviam-se. Havia até alguns que já tinham pratos, improvisados de embalagens de plástico.
Foi lá que conheceu Aurora, mãe de Manuel, o rapaz das fintas. No dia anterior puxara as orelhas ao seu filho por inventar histórias. "Não há homens-frigorífico, nem frigoríficos andantes de onde nasce comida!". "Mas é verdade, mãe.". E era verdade. Agora, que tinha ali Alberto à sua frente, envergonhava-se por não ter acreditado no seu rebento. Só em parte, porque a outra parte da vergonha era mais primitiva. Achava-o bonito e queria dizer-lhe olá. Só não sabia como. Não sabia. Corou. Fingiu uma sede e aproximou-se: "Desculpe, não terá uma água, por favor?".
Sobressaltado, Alberto olhou-a, hesitou, atrapalhou-se, estendeu a mão e deu-lhe uma água. "Aqui tem". Quis acrescentar dizeres sobre a beleza daquela rapariga, mas sentia-se envergonhado e não sabia que palavras acrescentar. Não sabia. Olhou-a e.
Passaram-se duas semanas.
Alberto via-a beber o sumo de laranja e pensava nas noites que passou sozinho, sem ela, mas agora que estava ali, até essas pareciam fazer sentido.